Edição 1000 (12 de julho de 2008)

O poeta está vivo



genor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, nos deixava há 18 anos. Vítima de uma série de complicações decorrentes da AIDS, o poeta faleceu no dia 7 de julho de 1990. Sua trajetória em vida está muito bem contada e comentada no artigo que reproduzo abaixo, do jornalista Tárik de Souza, veiculado no “Jornal do Brasil” do dia seguinte à morte de Cazuza. Nada a acrescentar sobre Cazuza. Sobre o que ele dizia em suas letras-poesias, apenas o silêncio, pois elas em si já dizem tudo.

Com o fio da lâmina bem afiada

O exagerado Cazuza, com suas rasantes na poética da paixão dilacerada, rompeu as farpas da fronteira rock/MPB. Em letras de corrosão “lupicínica”, este Agenor, quase xará de Cartola, sorveu música ao mesmo tempo em que dissipava a vida em noites que nunca tinham fim (Por que a gente é assim?) lá pelos baixos da vida. Bem Nelson Cavaquinho da geração rocker.

Sempre auto-irônico, realizou a profecia de “ganhar pra ser carente profissional”. Alguém capaz de explicitar seduções íntimas: “Há dias planejo impressionar você, mas fiquei sem assunto. Vem comigo, no caminho eu explico”. Um Morrissey de pele dourada pela tropicalidade, à cata de “um pouquinho de proteção ao maior abandonado, seu corpo com amor ou não, raspas e restos, mentiras sinceras me interessam”. A devastação afetiva, a relação narcísica especular pós-moderna, não poderia ter gerado polaróide mais holográfica. “Se todo alguém que ama, ama pra ser correspondido, se todo alguém que eu amo é como amar a lua inacessível, é que eu não amo ninguém”. Sem arrego, touché monsieur Lacan.

Em parcerias com o constante (Roberto) Frejat, o periódico dublê de letrista e crítico Ezequiel Neves e os demais barões vermelhos (Guto e os ex-integrantes Dé e Maurício Barros), Cazuza despontou como crooner e ponta de lança da classe de 82 do BRock, a da Blitz, do Paralamas, do Kid Abelha, do Magazine e até do Herva Doce.

A misturadeira do tempo já peneirou esses primórdios, o que só fez ressaltar o lastro do nosso Lou Reed de plantão, nos desvãos da saciedade amorosa: “Ser teu pão, ser tua comida, todo o amor que houver nessa vida, e algum trocado pra dar garantia”.

Em carreira solo, Cazuza aprofundou os sulcos de suas obsessões, ampliou o leque de parcerias (Lobão, Leoni, Gil, Rogério Meanda) servindo-se com freqüência da dialética das antíteses. “O nosso amor a gente inventa, pra se distrair e quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu”. Mesmo no embalo de uma bossa nova, raríssimo caso de hit retardatário na comemoração dos 30 anos do movimento, ele enfia a faca da dor: “Digo alô a um inimigo, encontro um abrigo no peito do meu traidor”. Faz parte do meu show.

Acossado pela AIDS, Cazuza, nos últimos discos, afiou ainda mais o fio da lâmina: “Eu vi a cara da morte e ela estava viva”, lancetou ele no estilete de Boas Novas, do álbum Ideologia. “Se você quiser saber como eu me sinto, vá a um laboratório ou um labirinto, seja atropelado por esse trem da morte”, vomitou em Cobaias de Deus (em parceria com Angela Rô Rô), no duplo do testamento Burguesia.

Mas o aço da navalha vinha sendo temperado ao longo de toda a carreira. A erosão de Só As Mães São Felizes, a que cita os pontos cardeais de sua cartilha poética, de Allen Ginsberg a Rimbaud (“você nunca sonhou ser currada por animais, nem transou com cadáveres”), data de 85. É contemporânea da autópsia em corpo vivo de codinome Mal Nenhum: “Não me chamem a polícia, não me chamem o hospício, não, eu não posso causar mal nenhum, a não ser a mim mesmo”.

O poeta terminal, cantor da garganta em chamas e voz sem apuro, sempre exorcizou a própria condição de passageiro da agonia. Quando voltou a lente para as mazelas do país, acionou morteiros no rock enredo Brasil (“Mostra a tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim”) ou abriu a metralhadora em O Tempo Não Pára: “transformam o país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro”. Escancarando, sem economizar conseqüências, locutor impune da indignação no país dos seqüestros industrializados. A geração AI-5, comprimida entre o amor livre e a praga da AIDS, auto-imolou seu mártir a sangue frio.